Em entrevista EXCLUSIVA, na edição da revista NORDESTE, o engenheiro agrícola Lourinaldo Nóbrega avalia efeitos da instabilidade climática no mundo, a crise de água na Amazônia, expõe que Transposição do Rio São Francisco como maior obra é idêntica o REUSO da água no Nordeste para resolver estiagem no semiárido nordestino
Leia abaixo na íntegra ou acesse pelo APP da Nordeste clicando aqui
Por Walter Santos
O universo dos recursos hídricos cada vez ocupa observações críticas continuadas a exigir da sociedade novos modelos de tratar da escassez e, sobretudo, do melhor uso da Água. Por isso há em curso uma provocação ao mesmo tempo um projeto sobre o REUSO Agrícola da Água. O engenheiro agrícola Lourinaldo B. Nobrega analisa e explica todo contexto, a seguir:
Revista NORDESTE – O mundo em todos os continentes convive com tragédias ambientais sem as devidas providências dos governantes para resolver as graves consequências de irresponsabilidades da sociedade global. O Sr como estudioso de áreas afins aos problemas climáticos, como analisa a realidade brasileira e em especial do Nordeste nesse contexto na direção do futuro?
LOURINALDO B. NOBREGA – O princípio geral que governa os eventos ambientais no mundo, benéficos ou não, sugere que ocorrem segundo as chamadas Leis Naturais entendidas como gerais e necessárias assim como a lei gravitacional. A eventos como terremotos, por exemplo, denominamos de exógenos porque fogem ao controle humano, porém existem também os eventos endógenos provocados pela ação humana.
A dinâmica exógena própria da Natureza dá a tendência dos fenômenos ou sinal, enquanto a ação antrópica do homem causa oscilações ou ruído alterando a tendencia, a maioria das vezes antecipando danos como ocorreu nas enchentes do Sul, a evidente exaustão dos recursos hídricos do Pantanal ou a debilitação em curso na Amazônia.
NORDESTE – Como inserir nessa leitura a questão climática nordestina?
LOURINALDO B. NOBREGA – Quanto ao Nordeste, apesar das secas periódicas, no passado foi uma região com maiores índices de umidade comparado a atualidade, porém é possível identificar certa tendência de redução da pluviosidade por causas eminentemente meteorológicas e fenômenos marítimos como o El Ninõ.
Por outro lado, não há como negar que a ação antrópica reduzindo a cobertura vegetal, adotando práticas agrícolas obsoletas e, principalmente, devido à ausência de uma consciência coletiva no sentido de minimizar os riscos das secas, somou-se à tendência natural agravando-a.
Tanto é verdade que o conceito que se tinha do Nordeste como uma região onde a maioria do seu território estava na região semiárida vai mudar porque recentemente tivemos notícia de que na Bahia e em Pernambuco já começaram a surgir regiões áridas prenunciando a formação de áreas desérticas.
Portanto, fatos como este acendem a luz vermelha para a tomada de medidas urgentes no sentido de minimizar os riscos de colapso da região, a começar pelas Políticas Públicas que devem ser mais eficientes e eficazes tanto nas tecnologias de convivência com a seca quanto na recuperação de áreas degradadas. Ao meu sentir, na elaboração dessas políticas impõe-se consultar a população local evitando decisões produzidas de cima para baixo (top down).
NORDESTE – O que um dia parecia impossível tem se registrado com frequência na Amazônia, que é o baixo volume de água no Rio Negro gerando seca do rio, por exemplo. Ao que devemos atribuir essa grave situação?
LOURINALDO B. NOBREGA – O fenômeno que alterna períodos chuvosos e de estiagem é ciclico e na Amazonia sazonalmente sempre conviveu com baixas cotas de água no Rio Negro, porém a situação se agravou em setembro deste ano devido ao fenômeno El Niño e ao aquecimento do Oceano Atlântico Tropical Norte, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
Vale registrar que, estudo publicado pela Nature Geoscience usando linguagem do jargão militar identificou um ataque a floresta amazônica denominado “movimento em pinça” onde o invasor divide suas forças em dois braços com o intuito de esmagar o inimigo.
No caso amazônico, um dos braços da pinça seriam as mudanças na circulação dos oceanos desencadeando um novo regime desfavorável de chuvas e o outro braço seria justamente, as derrubadas e o fogo que há décadas consomem a selva a partir de sua beirada sul, no chamado Arco do Desmatamento.
NORDESTE – Como explicar?
LOURINALDO B. NOBREGA – Para termos uma ideia clara do processo de destruição do Bioma Amazônico ele ocorre na seguinte sequência: garimpo ilegal, além de contaminar curso de água, atrai o madeireiro que desmata e abre espaço para a pecuária extensiva de baixa produtividade, esta com o tempo transforma a área em monocultura com as famosas “plantations”, a exaustão do solo faz surgir as savanas que não impedem o carreamento de sedimentos para os rios provocando assoreamento e finalmente a morte do curso d’água.
DESMATAMENTO
NORDESTE – No seu entendimento, como as queimadas com motivações criminosas no âmbito ambiental tem produzido efeitos nos recursos hídricos das regiões?
LOURINALDO B. NÓBREGA – Destruir é muito mais fácil do que construir porque na destruição se usa a energia acumulada e na construção é preciso agregar energia, logo, fazer o mal é mais barato do que fazer o bem.
Para destruir uma floresta é muito simples, basta dois tratores puxando uma corrente e uma caixa de fósforo, entretanto, para colocar uma floreste em pé a Natureza leva muitos anos. A queima da mata para justificar a atividade agrícola é uma prática irracional e obsoleta.
O ideal é que ao explorar uma área legalmente destinada a agricultura, em vez da queima seja aproveitada a serrapilheira como cobertura e adubo natural. Claro que todo desmatamento, mesmo que seja para produção de alimentos tem seu custo de oportunidade representado pela destruição da cobertura vegetal que funciona como uma espécie de esponja absorvendo a agua da chuva que cai e, paulatinamente vai liberando esta agua na forma de olho d’agua e rios.
NORDESTE – Mas há comprovada destruição para plantar sojas e criar gados?
LOURINALDO B. NOBREGA – A retirada da cobertura vegetal a ser ocupada com a monocultura da soja explica, por exemplo as enchentes no sul, onde a ausência de árvores de raízes profundas diminuiu a capacidade de retenção de agua do solo e, ao mesmo tempo elevou a velocidade de escoamento da agua causando o extravasamento de rios e a inundação de cidades a jusante.
ESTIAGEM E ACESSO À TECNOLOGIAS
NORDESTE – Os registros históricos apontam com dados que as áreas de semiárido nordestino sempre abrigaram efeitos terríveis à sobrevivência humana gerando êxodo rural na direção do Sul e Sudeste. Em pleno século XXI como conviver com o drama da estiagem com maior racionalidade de políticas e convivência em si?
LOURINALDO B. NOBREGA – Estive por duas vezes no Canadá, país que passa boa parte do ano com suas terras cobertas por neve, condição que coloca aquele país em situação similar à do Nordeste no que tange a produção agrícola, ou seja, se no Canadá a restrição a produção é causada pela água em forma de gelo, no Nordeste a causa é a escassez de água.
Sou cristão e respeito as tradições religiosas, porém, naquele país nunca vi uma procissão para acabar com a nevasca, as pessoas entendem a neve como um fenômeno meteorológico e simplesmente usam os recursos disponíveis para conviver e produzir em baixas temperaturas.
NORDESTE – Que analogia se aplicar no caso nordestino?
LOURINALDO B. NOBREGA – A mesma lição se aplica ao Nordeste, pois para conviver com o drama da estiagem é preciso recorrer às tecnologias disponíveis de convivência com a seca, quais sejam, barragem subterrânea, poço amazonas, pastos arbóreos, uso racional da vegetação xerófila e, principalmente adotar urgentemente o reuso agrícola.
TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
NORDESTE – Há registro de que a Transposição do Rio São Francisco é de fato a maior obra hídrica do País a partir do Governo Lula a exigir gestão da Água e programa socioeducativo voltado às novas gerações para saber fazer melhor uso dos recursos hídricos. Qual a etapa seguinte a partir de agora em diante?
LOURINALDO B. NOBREGA – Sem dúvidas, o Nordeste foi beneficiado no Governo Lula com sua maior obra estruturante de todos os tempos, a transposição do Rio são Francisco, sem a qual muitas cidades do Semiárido entrariam em colapso e deixariam de existir.
Todos se lembram do caso vivenciado por Campina Grande e cidades do entorno abastecidas pelo Açude Boqueirão que ameaçou entrar em exaustão quando as cidades passaram a consumir a única reserva de água disponível que correspondia ao volume morto da barragem.
Houve quem aventasse a possibilidade de Campina ser abastecida por carro-pipa o que seria uma catástrofe, porém graças a Transposição, a oferta de agua superou a demanda e o volume do açude começou a se recompor evitando o pior. Portanto, a etapa seguinte é continuar com política de manutenção e ampliação da açudagem visando a acumulação em tempos de chuva e usar a agua racionalmente adotando as modernas técnicas de reciclagem.
NORDESTE – Permita-nos: como o Sr conceitua a obra da Transposição lembrando que ela sofreu uma verdadeira guerra contrária de Minas, Bahia, Sergipe, Alagoas, enfrentou greve de fome de Bispo Appio, invasões de indígenas etc.? Por que isso e Que efeitos reais a obra realizada apresentam na vida sertaneja?
LOURINALDO B. NOBREGA – Tecnicamente reconheço que um rio não pode servir a vários propósitos: abastecimento de água potável para consumo humano e indústrias, geração de energia, suprimento de grandes projetos de irrigação, navegabilidade, recreação e até funcionar como corpo hídrico para dispensação de esgoto sanitário. Portanto, há que se definir uma escala de prioridades, naturalmente com o abastecimento humano no topo das preferencias, até porque a agua é um alimento,seguido do uso industrial e finalmente do uso na agricultura. Acredito que esses argumentos foram colocados por ocasião da discussão que precedeu a transposição. Por isso é de estranhar a posição contrária de um Bispo que aparentemente negou a frase bíblica “Dai de comer e beber a quem tem fome e sede”.
NORDESTE – Só que há registro de posicionamentos radicais contrários à Transposição por Minas, Bahia…
LOURINALDO B. NOBREGA – Quanto aos demais estados que reclamaram do desvio de 2% da vazão do Velho Chico para abastecimento de cidades do Nordeste, a explicação está na Fábula de La Fontaine. Como reclamar da transposição se a água que passou por seus territórios já havia gerado os benefícios esperados e acabaria sendo despejada no oceano?
REUSO DA ÁGUA
NORDESTE – Informações atualizadas indicam que o Sr com seu curriculum nas áreas da engenharia, meio ambiente e cenários agrícolas dispõe de um projeto eficaz para REUSO da Agua. Como isso se efetiva e que efeitos podem produzir na cena agrícola nordestina?
LOURINALDO B. NOBREGA – Sim, é verdade. Como afirmei, não basta apenas acumular a agua, é preciso utilizá-la sem desperdício e com eficiência. Nessa perspectiva, realizei um Estudo Preliminar propondo o emprego da agua de reuso na agricultura.
O reuso consiste no aproveitamento do efluente que emana das Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) que, após análise será submetido a tratamento físico-químico e microbiológico com vistas a sua adequação às normas internacionais e brasileiras de reuso passando a ser empregado como fluido irrigante na produção agrícola.
NORDESTE – O que significa na prática ?
LOURINALDO B. NOBREGA – O reuso de aguas residuais oriundas de ETE não constitui nenhuma novidade, uma vez que já vem sendo adotado com vantagens técnicas e econômicas em países centrais como China, Estados Unidos, Singapura, Espanha, Portugal, Itália e, principalmente em Israel que desde 1989 reutiliza águas residuais para produção agrícola, na indústria e recarga de aquíferos. Em Israel que recicla 90% de seus efluentes, o esgoto não é visto como problema e sim como fator de produção.
NORDESTE – Como tratar a situação nacional?
LOURINALDO B. NOBREGA – No Brasil, apenas 45% dos esgotos são tratados e destes apenas 1,5% é reusado de maneira planejada.
Portanto, se o reuso se aplica a esses países, com igual razão se aplica também à Paraíba, ao todo o Semiárido e a todo o país. São Paulo, por exemplo, já largou na frente adotando o reuso industrial no projeto Aqua polo que abastece indústrias do ABC com água de reuso e que antes usavam água do poluído rio Tietê.
NORDESTE – O Sr. poderia traduzir com objetividade como implantar o REUSO como incremento socioeconômico?
LOURINALDO B. NOBREGA – A intenção é produzir inicialmente sorgo forrageiro, uma gramínea cuja silagem se aproxima da silagem de milho grão amarelo e assim reduzir o prejuízo dos agricultores com a perda de peso e morte famélica de seus animais durante a estiagem.
Para se ter uma ideia, com 5 ha de sorgo irrigado cuja produtividade alcança 200 t/ha.ano em três corte/rebrotas, é possível produzir um volumoso de alta qualidade para alimentar um plantel leiteiro de 100 vacas girolanda atendendo não apenas o consumo da cidade, mas também gerando excedentes para instalação de fábricas de derivados do leite como o queijo e a manteiga.
Vencida esta primeira etapa, inclusive quebrando certos estereótipos que ainda existe na população contra o reuso, o passo seguinte é o cultivo de frutas tropicais como goiaba, manga e o caju, deste último se extrai três produtos: a castanha considerada uma com modity; o doce e o suco do pedúnculo e; o mel que as abelhas produzem em sua atividade de polinização. A ideia é atender o consumo “in natura” local da fruta e gerar excedentes para a atração de agroindústrias de doces e sucos.
NORDESTE – Em que estado nordestino, o Sr dialoga para implementar projeto piloto?
LOURINALDO B. NOBREGA – Devido a contatos previamente já estabelecidos com Prefeituras de duas cidades representativas da Paraíba, a ideia é iniciar com um Projeto Piloto naquele estado que, uma vez validado na prática, terá sua multiplicação recomendada para todos os 223 municípios.
Atualmente a Paraíba conta com apenas cerca de 40 municípios saneados (18%) o que daria uma boa frente de trabalho. O restante dos municípios seria incorporado à medida que forem beneficiados com o saneamento básico ao amparo do Novo Marco Legal do Saneamento, Lei nº 14.026/2020, cuja meta é sanear 90% das cidades brasileiras até 2033.
Com base neste Marco, estimamos que o potencial irrigável da Paraíba alcança 20.000 hectares, podendo gerar em torno de 80.000 empregos diretos. Não seria exagero afirmar que a adoção do reuso propiciaria a abertura de uma nova Fronteira Agrícola na Paraíba, considerando que em cada cidade saneada passa um rio ainda não percebido pelos formuladores de política econômica para o Nordeste que pode muito bem suprir agua de reuso para irrigar um verdadeiro Cinturão Verde no entorno da cidade. Portanto, a nossa luta, para a qual espero contar com a parceria da Revista Nordeste, é transformar o Reuso Agrícola em uma Política Pública.
NORDESTE – Como o REUSO contribui para o desenvolvimento socioambiental e econômico?
LOURINALDO B. NOBREGA – Além do uso agrícola, o reuso tem sua aplicação em diversas áreas: industrial no arrefecimento de máquinas térmicas e resfriamento de processos industriais; urbano na limpeza de ruas, combate a incêndio, paisagismo, irrigação de campos de esportes, parques e enchimento de lagoas recreativas; prédios de habitações coletivas, na rega de gramados e jardins residenciais; recarga de aquíferos subterrâneos para evitar o rebaixamento do lençol freático e, manter ou elevar a vazão do manancial e; aquicultura onde já existem estudos de produção de peixes e plantas aquáticas visando a obtenção de alimentos e/ou energia. Portanto, à medida que o reuso é implantado reduz a pressão sobre a agua natural que passa a ser liberada para o consumo humano e a indústria.
NORDESTE – Como estender aos ambientes afetados pela estiagem?
LOURINALDO B. NOBREGA – No Semiárido, por exemplo, é de suma importância que em cada estação de reuso exista uma Estação de Produção de Mudas de espécies xerófilas para repovoamento do Bioma Caatinga gerando pastos arbóreos imprescindíveis na viabilização da ovinocaprinocultura e, principalmente a produção de frutíferas como umbu, jatobá, oiti e outras do gênero.
Como se pode ver, a implantação do Reuso Agrícola é uma questão de prioridade para criar em cada cidade um Cinturão Verde de abastecimento com produtos de alta qualidade e a preços acessíveis, haja vista que serão produzidos localmente sem a incidência dos custos de incidências como ocorre com produtos transportados de outras regiões.
Quem deu a largada no reuso, por incrível que pareça, não foram os países periféricos e sim os países centrais que descobriram no efluente que provém das Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) uma excelente fonte hídrica para aplicações na agricultura, industrias e recarga de aquíferos. Em cada cidade saneada passa um rio invisível que deve ser aproveitado para produção.
O uso do esgoto tratado para fins não potável vem sendo adotado pela China que reusa 12,9 m3/ano (2019), Estados Unidos 13 m3/ano (2020). Chipre e Malta reaproveitam 100% dos esgotos tratados e Arabia Saudita reaproveita quase 60%. Apenas três países no mundo adotam o reuso potável: Estados Unidos, África do Sul e Namíbia.
Se Israel desde a década de 1990 recicla cerca de 90% de suas aguas residuais para irrigar pera, uva e maçã que exporta para o exigente Mercado Comum Europeu, porque diabos a Paraíba não pode fazer o mesmo, irrigando forragens para silagem e frutas como caju e manga para consumo próprio e empregar o excedente dessa produção na agroindústria.