O reuso versus escassez de água I Por Sérgio Rolim Mendonça

Análise faz uma leitura crítica e especializada de quem se dedica aos estudos e operacionalização de sistema para resolver de vez um antigo problema.

Artigo publicado na edição 214 da Revista NORDESTE. Leia abaixo ou acesse aqui para ler no APP da NORDESTE

 

 

Por Sérgio Rolim Mendonça

 

Gostaria inicialmente de lembrar que o Brasil concentra entre 12 e 16% do volume total de recursos hídricos do nosso Planeta Azul e parte dos maiores recursos hídricos renováveis do mundo (41.281 metros cúbicos anuais por habitante), pertence ao nosso país, segundo a Food and Agriculture Organization (FAO). Entretanto, esses recursos não são distribuídos de forma homogênea e se encontram ameaçados por fatores socioeconômicos diversos. A título de exemplo, 16,7% da área do país está situada no Semiárido Nordestino.

 

O CASO DO NORDESTE

 

Analisemos inicialmente o caso do Nordeste. Quando uma determinada região possui uma disponibilidade hídrica menor que 1.500 metros cúbicos por habitante por ano, se admite que este local esteja em uma situação crítica. É o caso dos estados de Pernambuco (1.270 m3/habitante/ ano) e Paraíba (1.394 m3/habitante/ano). Entre os 26 estados da federação, Pernambuco ocupa o último lugar e a Paraíba, o penúltimo.

 

No caso da agricultura de uma maneira geral, sabemos também que o Brasil usa cerca de 69% da água doce para irrigação, em grande parte com muito desperdício (a média mundial é da ordem de 70%).

 

Cada metro cúbico de água usado pela indústria e pelo setor de serviços gera 70 a 200 vezes mais riqueza do que um metro cúbico usado para agricultura. Com a grande escassez de água prevista no Planeta, os recursos hídricos automaticamente serão direcionados para as áreas urbanas. Consequentemente, a tendência no futuro deverá ser e terá que ser: “Água doce para as cidades e águas residuais tratadas para a agricultura”.

 

 

A DEMOGRAFIA NACIONAL

 

Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 5.570 munícipios, 70% dos quais são pequenas cidades, o que significa que em 3.900 deles vivem menos de 20 mil habitantes. Praticamente todas essas pequenas cidades não possuem sistemas de esgotamento sanitário.

 

Por isso, não devemos esquecer os menos favorecidos, dos 33 milhões de brasileiros sem acesso à água potável e dos 94 milhões que não são servidos por redes de esgotos.  E o pior, os que são beneficiados com redes coletoras, a maioria deles, não são contemplados com tratamento de seus dejetos, fazendo com que a poluição dos esgotos brutos se concentre cada vez mais por ocasião do despejo final nos corpos receptores.

 

E, note-se bem, não estamos considerando a população rural. Desde o período áureo do Banco Nacional de Habitação (BNH), que o governo convive com rios e difunde enfermidades. Na prática, grande parte dessas águas poluídas deveria ser desviada para a irrigação na agricultura, produzindo excelentes alimentos, provavelmente muito contaminados.

 

 

EQUÍVOCOS DOCENTES

 

Alguns colegas engenheiros, quando são perguntados se é possível a utilização de esgotos tratados na agricultura, respondem que esta solução não vale a pena, pelo fato desta iniciativa prejudicar a saúde da população que irá ingerir os alimentos produzidos com o auxílio desses despejos. O que se sabe é que, na prática, muitos agricultores quando não possuem alternativas, usam efluentes de esgotos brutos em larga escala para adubar suas plantações.

 

Certos professores da área da Engenharia Sanitária, após orientar os alunos sobre os vários tipos de tratamento de esgotos existentes, ainda indicam que o destino final desses efluentes deverá ser um corpo de água, ou raras vezes, a descarga no solo. Porém é de conhecimento geral que nenhum desses processos elimina totalmente os microrganismos e a matéria orgânica existentes no esgoto bruto.

 

 

MEDIDAS

PREVENTIVAS

 

Por que a maioria das empresas de saneamento básico não exige que os projetistas de sistemas de esgotos sanitários apresentem mais uma alternativa para que os efluentes tratados, sejam direcionados para a agricultura e/ou aquicultura, em vez de serem lançados diretamente nos rios e/ou mares?

 

A escassez de água associada à deterioração da qualidade dos corpos de água induz à busca de fontes hídricas complementares, revelando o reúso dos esgotos tratados como uma solução alternativa em potencial. Com essa política de reúso, elevados volumes de água potável podem ser economizados com a utilização de água de qualidade inferior, geralmente es- goto doméstico tratado, para atender a fins que prescindem da potabilidade.

 

 

POUCO USO POTENCIAL

 

 

O Brasil utiliza muito pouco do potencial de suas águas residuais para reuso agrícola. A utilização de águas residuais tratadas contribui para uma gestão mais sustentável dos recursos hídricos porque ajuda a aumentar os recursos hídricos necessários, satisfazendo as necessidades presentes e futuras de usos mais nobres, além de reduzir a vazão das águas residuais tratadas descarregadas nos corpos de água receptores, protegendo os ecossistemas e diminuindo a quantidade de poluentes lançados no solo e no ambiente aquático.

 

As vantagens do reuso serão enormes, principalmente para o Semiárido do Nordeste, onde existem muitos rios que não são perenes (nonflow rivers). Além de não contaminarem os corpos receptores, poderia ser utilizada grande parcela de adubos orgânicos naturais, com economia na compra de insumos químicos, gerando grande fonte de emprego para as pessoas mais necessitadas, com a criação de cooperativas para os agricultores, melhorando consideravelmente a saúde da população.

 

 

PRINCIPAIS POLUENTES

 

Os principais contaminantes dos esgotos domésticos são os coliformes termotolerantes (coliformes fecais) e os ovos de helmitos e cistos de protozoários. Infelizmente, os ovos de helmintos e cistos de protozoários, não são eliminados por nenhum processo sofisticado de tratamento de esgotos, mesmo se fossem aplicadas cloração e/ou radiação ultravioleta nos efluentes tratados.

 

O Brasil é privilegiado por ser um país de clima tropical, pois as bactérias se desenvolvem bem mais rapidamente do que nos países de clima temperado.  Os principais tipos de tratamento só têm investido em abastecimento de água, esgotos e drenagem nas áreas urbanas.

 

NÚMEROS DE ÓBITOS

 

Por outro lado, sabemos que as causas de morte nos países industrializados devido a doenças infecciosas e parasitárias são da ordem de 8%, enquanto que nos países em desenvolvimento, este valor supera 40%.

 

Infelizmente, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) só se refere à eliminação dos coliformes fecais (coliformes termotolerantes).

 

Estes são problemas dos países desenvolvidos. A dose mínima infectante das bactérias é de um para 10.000, enquanto que para os helmintos é da ordem de um para 10. É justamente o nosso caso, principalmente para os brasileiros que vivem nas regiões mais pobres do país.

 

A nível mundial, mais de um bilhão de pessoas são infectadas por ascaridíase. A fêmea do Ascaris lumbricoides, o maior dos nematoides (roundworm), a popular lombriga, chega a produzir 200 mil ovos por dia. O principal vetor dessas doenças é o esgoto doméstico sem tratamento, lançado nos rios e/ou no solo, ou tratado de forma inadequada.

 

USO INDEVIDO NOS RIOS

 

Também já estamos cansados de saber que na Região das Américas, 90% dos esgotos brutos são despejados sem nenhum tipo de tratamento nos rios, mares e terras agrícolas. Estima-se que quatro milhões de hectares de terras agrícolas são irrigadas com águas residuais contaminadas com patógenos, gerando graves problemas de saúde pública e poluição ambiental.

 

A ALTERNATIVA INDICADA

 

Tratamento da água: as lagoas de estabilização são o melhor sistema natural de tratamento de esgotos existente.

 

A evacuação indevida das descargas dos sistemas de esgotos contamina os de esgotos existentes funcionam por ação de microrganismos e, dentre as alternativas de tratamento biológico, as lagoas de estabilização são o melhor sistema natural de tratamento de esgotos existente.

 

Nesse sistema, as bactérias decompõem a matéria orgânica contida nos esgotos e as algas utilizam esses compostos juntamente com a energia da luz solar para a fotossíntese, liberando oxigênio para o meio líquido. O oxigênio é, por sua vez, assimilado pelas bactérias, fechando assim o ciclo da natureza.

 

A fotossíntese depende principalmente da radiação solar direta. No caso do Nordeste, João Pessoa e Campina Grande recebem radiação solar na faixa de 4,89 kWh/m2 dia, ideal para o funcionamento das lagoas de estabilização. No interior da Região temos valores ainda mais altos. Esse valor é próximo ao observado no deserto de Saara, com radiação solar correspondente a 6 kWh/m2.dia.

 

 

DADOS COMPROVADOS

 

Os sistemas de tratamento de esgotos por meio de lagoas podem produzir efluentes que cumprem com as Diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), tanto para a qualidade bacteriológica, como para a eliminação de ovos de helmintos e cistos de protozoários. Seus efluentes podem ser usados na agricultura e na aquicultura, principalmente em países de clima tropical.

 

As concentrações médias típicas de nitrogênio (N) e fósforo (P) de efluentes de lagoas de estabilização são 15 mg/l e 3 mg/l, respectivamente. Considerando intensidade de irrigação na agricultura de 20.000 m3/(habitante/ano), em uma zona árida, é possível obter taxa de aplicação de nitrogênio igual a 300 kg/ha e para fósforo, 60 quilos por hectare, com consequente economia dos principais fertilizantes químicos usados na agricultura.

 

 

BASTA UM SIMPLES DECRETO

 

No nosso entender, bastaria um simples decreto do Governo Federal para obrigar que as empresas de saneamento incluíssem durante a contratação de projetos de sistemas de esgotos sanitários, a exigência para que as firmas, sempre que fosse viável, apresentassem como uma alternativa para o destino final dos efluentes tratados, a utilização do reuso direcionado para a agricultura ou para a piscicultura.

 

Essa seria uma solução muito simples, que poderia influenciar e contribuir enormemente na melhoria e na qualidade de vida dos milhões de brasileiros que ainda não foram contem plados com esses serviços prioritários e tão essenciais para a proteção da saúde pública.

 

Não se esqueça: a água doce existente no mundo é finita. Existe apenas uma grande reciclagem por parte da natureza. Na hora de matar sua sede, pare um pouco para pensar. Talvez a água que você irá beber, já possa ter sido tomada por um dinossauro.

 

 

 

 

NOTA – Informações adicionais sobre o artigo “Reúso versus escassez de água”, de autoria do professor Sérgio Rolim Mendonça

O engenheiro Sérgio Rolim Mendonça é funcionário de carreira aposentado da OPAS/OMS e está atualmente como presidente da Academia Paraibana de Engenharia (APENGE). Seu último cargo no Centro Pan Americano de Engenharia Sanitária e Ciências do Ambiente (CEPIS/OPAS/OMS), em Lima Peru, foi de Assessor de Águas Residuais para a América Latina e o Caribe.

 

Seu artigo recentemente publicado pela Revista da APENGE No. 3, e dirigido ao público leigo, sugere, que sempre que houver viabilidade, todo projeto de sistemas de esgotos das cidades, inclua como uma alternativa para o destino final dos efluentes tratados, a descarga na agricultura ou aquicultura, em vez de contaminar os cursos de água.

 

Essa seria uma solução muito simples que poderia influenciar e contribuir enormemente na melhoria e qualidade de vida dos brasileiros que ainda não foram contemplados com esses serviços prioritários tão essenciais para a proteção da saúde pública. Sua ideia é que essa sugestão sensibilize o Governo Federal e possa se tornar uma Política Pública a nível nacional.

 

O Brasil possui, segundo dados recentes do IBGE, cerca de 3.900 municípios com população com menos de 20 mil habitantes onde praticamente, todas essas pequenas cidades não possuem sistemas de esgotamento sanitário.

 

O livro do professor Dr. Stewart Oakley, da Universidade El Chico, Califórnia, lançado em 2022, em Londres, pela International Water Association (IWA), corrobora com a opinião do professor Rolim, relatando exatamente o mesmo tema no prefácio dessa publicação, porém dirigida ao público universitário.

 

O professor Rolim juntamente com o professor Oakley têm bastante experiência internacional nesse tema, o que faz com que suas ideias sejam bastante realistas para nosso país, especificamente para o Nordeste brasileiro.

 

Artigo publicado na edição 214 da Revista NORDESTE

 

 

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One thought on “O reuso versus escassez de água I Por Sérgio Rolim Mendonça

  1. LOURINALDO NOBREGA 2 de dezembro, 2024 at 10:53

    Com seu vasto currículo no campo da engenharia sanitária, o Prof. Dr. Sergio Rolim nos brinda com um belo texto enaltecendo o Reúso Agrícola como uma excelente alternativa para minimizar os efeitos da escassez de agua que afeta as regiões áridas e semiáridas do Nordeste.
    Sempre gosto de afirmar que a agua é uma só, porém existe na natureza em diferentes graus de contaminação. Compete ao homem recorrer ao estado da arte tecnológica para adequar esta agua aos padrões sanitários determinados pelas normas técnicas aproveitando-a para a produção de alimentos, por exemplo. Isto porque o reúso não se aplica apenas a agricultura, já vem sendo usado no Brasil para fins industriais, a exemplo do Projeto Aquapolo que fornece 1.000 litros/segundo de agua reciclada proveniente de esgoto domestico para várias indústrias do ABC-Paulista.
    O Prof. Rolim chama a atenção para o elevado consumo de agua na agricultura ao afirmar: “A agricultura utiliza cerca de 69% da água doce na irrigação” e alerta, “Com a grande escassez de água prevista no Planeta, os recursos hídricos automaticamente serão direcionados para as áreas urbanas” e, conclui: “A tendência no futuro deverá ser e terá que ser: Água doce para as cidades e águas residuais tratadas para irrigação”.
    Portanto, eis a razão para que a Paraíba dê um passo à frente copiando as boas práticas de países como Israel e passe a adotar, sem delongas, o Reuso Agrícola, uma excelente alternativa para organizar a mão de obra ociosa do interior do Estado em Cooperativas de Produção produzindo alimentos de elevada qualidade e a baixo custo para consumo da população. Além disso, seriam gerados excedentes de matéria prima para atrair agroindústrias melhorando a arrecadação dos municípios e dinamizando a economia local.
    Reconhece-se que as transferências governamentais são fundamentais como políticas assistencialistas para promover o chamado Resgate Social ao retirar muitos brasileiros da pobreza extrema, porém é fundamental que nosso decisores públicos entendam a importância do chamado Desenvolvimento Endógeno que aproveita as oportunidades locais em termos de fatores de produção e matéria prima viabilizando sistema produtivo – no caso do Reúso Agrícola, a baixo custo – e melhorando a qualidade de vida dos munícipes e o bem-estar social geral da população.
    Eng. Lourinaldo Nóbrega

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