Em novo livro, Cannizzaro dialoga com personagens contraditórios de Shakespeare

Em “O Feitiço além das Paixões, o outro lado da vida”, o autor traz à luz da contemporaneidade uma ficção de parte da obra de William Shakespeare. Cannizzaro ressuscita personagens como Desdêmona e Otelo, que compõem a peça literária, “Otelo, o Mouro de Veneza”, bem como, as três bruxas, personagens da peça teatral Macbeth.

 

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Por Luciana Leão

 

Ao “acordar”, alguns personagens da obra fenomenal de Shakespeare, Cannizzaro descreve um novo cenário que impactou a Inglaterra, no século XVI. Por meio de novos personagens acrescidos à obra ficcional, Paulo Roberto Cannizzaro traça um diálogo imaginário com o grande poeta, escritor e dramaturgo William Shakespeare.

 

A revista NORDESTE conversou com o autor que antecipa detalhes do novo romance a ser lançado pela editora portuguesa Ipê das Letras, ainda em 2024, e no máximo nos primeiros meses de 2025, em fase de edição.

 

O mineiro, que adotou o Recife desde a infância, é autor de mais de 40 livros. Foto: Arquivo Pessoal

 

Revista NORDESTE – Qual foi sua inspiração em trazer à luz da contemporaneidade um romance ficcional e histórico sobre parte das obras de William Shakespeare?

PAULO ROBERTO CANNIZZARO – Durante mais de 20 anos assisti as peças e li os sonetos de Shakespeare. A grande mestra foi a crítica literária Bárbara Heliodora, notadamente nos grandes jornais do Rio de Janeiro, dos quais fui um compulsivo leitor na década de oitenta, uma das maiores especialistas sobre Shakespeare, junto a Harold Bloom.

Confesso-me um amante dos textos desse gênio, e da crítica teatral dela. A despeito de tantos autores maravilhosos, que me forjaram como leitor, e como escritor, pessoalmente para mim, junto com Dante na Divina Comédia, e Cervantes, com o seu cavaleiro Dom Quixote, são os maiores autores de todos eles. O que esse homem fez? Simplesmente inaugura uma forma dramática.

Eleva o drama a outro patamar, introduzindo a complexidade em suas tramas e personagens. Mistura gêneros, combina comédia, tragédia e romance, o que desafiou as convenções teatrais da época. Os personagens shakespearianos são notavelmente complexos, apresentam dilemas morais e emocionais que refletem como ninguém a condição humana. Essa abordagem influenciou escritores a explorarem a psicologia e a individualidade em suas obras. Toda sua obra e seus personagens me inspiraram e me inspiram.

 

Temas atemporais

 

Cannizzaro: “Ao criar personagens tão diversos e originais Shakespeare nos convida a considerar a complexidade da moralidade e o impacto das emoções em nossas vidas”.

 

NORDESTE – Como o senhor acredita que Shakespeare moldou a literatura e o teatro de sua época e as gerações subsequentes?

CANNIZZARO – Ele inova o vocabulário, a linguagem, incluindo o uso de trocadilhos, metáforas e um rico vocabulário. Popularizou expressões que ainda são usadas hoje. Seu domínio da poesia, especialmente no verso, estabeleceu um padrão para poetas e dramaturgos seguintes. Os temas abordados em suas obras—amor, poder, ciúmes, ambição, traição—são atemporais e ressoam com públicos de diferentes épocas e culturas. Isso garante que seus textos permaneçam relevantes ao longo dos séculos. Ele produz um impacto cultural sem precedentes. O teatro ganha o rosto de arte. Shakespeare ajudou a estabelecer o teatro como uma forma de arte respeitada e popular, o que nunca acontecia.

O Globe Theatre, o seu teatro, onde suas peças eram encenadas, tornou-se um ícone cultural, e a prática de encenar suas obras continua a atrair públicos em todo o mundo. Ele inventa o Ocidente, é quem inaugura verdadeiramente a modernidade, seus textos continuam atuais. Shakespeare explorou emoções humanas profundas e conflitantes. Ninguém tratou tanto da contradição humana. Otelo, o íntegro veneziano, ama a sua amada Desdêmona, mas é capaz de matá-la por um ciúme descontrolado. Personagens como Hamlet e Macbeth lidam com dilemas morais que são universais, servem para todos os tempos. Essas questões de ética, lealdade e ambição ainda são relevantes em contextos contemporâneos, seja na política, no trabalho ou nas relações pessoais.

É inacreditável, é absurdo que no “Mercador de Veneza”, no século XVI, este homem tenha discutido sobre a Teoria Geral dos Contratos, no campo do Direito. Todo aluno de Direito devia assistir essa genial peça. É assustador como ele pôde tratar desse tema que só agora escritores estão escrevendo em 2024. Nossos magistrados deviam ler Shakespeare, antes de julgar um caso. Quatrocentos anos esse homem ainda é moderno.

 

Comportamento humano

 

NORDESTE-  Shakespeare capturou a complexidade da natureza humana como poucos autores conseguiram. Como essa capacidade influenciou a forma como vemos a moralidade, o poder e as emoções humanas? Como essa complexidade lhe influenciou a escrever esse romance?

CANNIZZARO – Essa é uma excelente questão. Shakespeare apresentou personagens que não eram simplesmente “bons” ou “maus”. Ele sequer os julga, inclusive. Em peças como Hamlet e Macbeth, ele explorou dilemas morais complexos, mostrando que as ações dos personagens sempre estão motivadas por uma combinação de ambições, medos e vulnerabilidades.

Essa abordagem levou à compreensão de que a moralidade é frequentemente ambígua e contextual. Suas histórias destacam como emoções intensas podem influenciar comportamentos e decisões, refletindo a força e a complexidade das experiências humanas. Suas obras incentivam uma reflexão sobre a natureza humana e as motivações subjacentes às ações.

Ao criar personagens tão diversos e originais Shakespeare nos convida a considerar a complexidade da moralidade e o impacto das emoções em nossas vidas. Escrevi um romance ambientado com diálogos imaginários, personagens conversam diretamente com Shakespeare, foi uma forma de homenagear o meu encantamento por ele e pelos temas que tanto tratou em suas peças, refletindo como todos nós somos contraditórios, capazes dos melhores e dos piores gestos.

 

NORDESTE – De que maneira esses comportamentos estão descritos em seu novo livro?

CANNIZZARO – Refletindo sob a dor humanas, sobre normas sociais e temas políticos: São os próprios temas de suas peças. Ele nos mostra a debilidade dos governantes. A falta de ética, a crise e a depravação do Estado. Quer coisa mais contemporânea que essa?  As obras de Shakespeare refletiam as questões políticas de seu tempo, incluindo a luta pelo poder, lealdade, traição e legitimidade. Peças como Macbeth e Rei Lear exploram as consequências do poder e as falhas dos nossos governantes.

 

Questões sociais

 

NORDESTE –  O senhor enxerga a influência de Shakespeare não só nas artes, mas também em questões sociais, como o papel das mulheres, o poder e a política. No seu livro, como essa particularidade aparece em sua narrativa?

CANNIZZARO – A influência de Shakespeare na arte e na representação das mulheres é profunda e multifacetada. No tocante às mulheres é verdade que as mulheres tiveram menos expressão nos palcos.  A maioria de seus personagens são homem, mas a própria Pórcia, mesmo tão brilhante na eloquência do direito, tem que se vestir de homem para fazer uma defesa de um amigo num tribunal.

Mesmo assim é inegável, que Shakespeare criou várias personagens femininas fortes e multifacetadas, como Lady Macbeth, e Julieta. Essas mulheres frequentemente também desafiam as normas sociais e exploram suas próprias identidades, refletindo uma visão mais complexa da feminilidade. Muitas de suas personagens femininas exercem uma forma de agente de mudanças, desafiando as expectativas de sua época.

Por exemplo, em A Megera Domada, Katherina é uma figura que se opõe às normas de gênero, enquanto em Romeu e Julieta, a Julieta toma decisões que afetam seu destino. No meu livro, “acordo” a Desdêmona, um dos personagens mais angelical, uma verdadeira princesa de Veneza. No meu texto eu ressuscito ela, que não aceita o destino original na peça Otelo. Ouso-lhe dar-lhe outro destino. Por isso o livro é interessante, quando ela [Desdêmona] vem conversar com ele [Shakespeare].  Na peça original Otelo mata a Desdêmona, agora ela não aceita isso. No meu livro, ela (deixa de ser submissa) e vem discutir com Shakespeare. A originalidade do livro foi acordar Shakespeare e os personagens dele.

 

Diálogo imaginário e contemporaneidade

 

NORDESTE – Em seu diálogo imaginário com Shakespeare, como o senhor enaltece o impacto dele sobre a identidade cultural inglesa e mundial?

CANNIZZARO – As obras de Shakespeare tornaram-se uma parte importante da cultura popular, sendo encenadas em várias partes da Inglaterra, depois ganham o mundo. Essa popularidade ajudou a democratizar o acesso à arte, fazendo com que o teatro fosse uma experiência comum entre as diferentes classes sociais. O impacto de Shakespeare perdurou, moldando a literatura, o teatro e a arte ocidental. Sua influência é evidente em obras subsequentes e continua a ser uma referência cultural até hoje.

 

NORDESTE –  Quais elementos da obra de Shakespeare que o senhor acredita que foram os mais revolucionários para a literatura e para a forma como contamos histórias hoje?

CANNIZZARO – Como um leitor curioso de sua obra, penso que ele ao criar personagens tão complexos, que apresentavam conflitos internos, dúvidas e emoções profundas, permitiu abrir uma janela da exploração da psicologia humana, é inegável que foi quem abriu esse caminho para uma maior profundidade nas narrativas literárias. Ninguém amou mais o homem do que ele, talvez ele nos quisesse dizer: Vocês são seres maravilhosos e livres, são capazes de fazer qualquer coisa.

A famosa frase “ser ou não ser, eis a questão” não é uma expressão qualquer, é uma das linhas mais icônicas da literatura, extraída do solilóquio de Hamlet. É falar com si mesmo, e isso foi possível através de sua arte. Essa reflexão aborda questões profundas sobre a existência e a condição humana. E nisso cabem todas as interpretações. Um detalhe importante: O conhecimento que se tinha na época era acadêmico, somente das universidades, as tradicionais Oxford e Cambridge. Mas ele quebra isso, como um homem popular, capaz de encantar a todos, a elite e a gente mais simples que lotava o seu teatro num dia ensolarado de Londres, num palco aberto. Ninguém acredita ainda, dos céticos, como um homem que nunca saiu de Londres, que sequer viajou, saindo do povo, e em pouco mais de 20 anos faz uma obra dessa monumentalidade. Shakespeare não se explica, Shakespeare se assiste e se emociona como Deus colocou tanto talento nele.

 

Inspiração à narrativa

 

NORDESTE – Como foi essa experiência em trazer para seu imaginário, em pleno século XXI, os  principais personagens  das obras de Shakespeare.

CANNIZZARO – Minha narrativa, ao meu julgo é interessante, foi uma maneira de homenageá-lo, e que me desculpe a minha falta de talento. Assim como ele misturou comédia e tragédias, me permiti fazer o mesmo, em licença poética. Ousei discutir com ele temas filosóficos, sobre o significado da vida, do tempo, sobre a morte, e do que vem depois daqui.

A narrativa do meu livro continua sendo Londres, em um teatro, com dois atores que vão representar suas peças, e aí resolvi acordar alguns personagens que querem reescrever outros enredos, acordei suas bruxas, a bela Desdêmona e Otelo, e fiz todos eles saírem de seus textos originais. Confesso, é um pouco de Woody Allen, e principalmente um pouco de Pirandello, e o resto vocês precisam ler. Segundo um grande especialista de Shakespeare que leu meu livro, é inclusive um tradutor dele, e conhece os sonetos como poucos, disse que meu livro foi autorizado por Shakespeare, como ele ainda não reclamou do meu texto acho que ficou tudo ficou permitido. As três bruxas também não protestaram, e Desdêmona e Otelo depois me agradeceram pelo novo final.

 

NORDESTE -Essa sua resposta nos deixa ainda com mais curiosidade sobre sua releitura ficcional e os desfechos dos personagens shakespearianos. O que teria a nos acrescentar…

CANNIZZARO – [risos…risos] Veja, eu não vou contar o final do livro, mas a Desdêmona acorda e vem enfrentar o seu fim escrito na peça Otelo. Quem é esse interlocutor durante o aparecimento de Shakespeare? Shakespeare vai voltar, vem também reclamar dos seus restos mortais que vão ser roubados no meu livro. No meu livro acontecem dois fenômenos inéditos.

O primeiro é que mesmo que os restos mortais de Shakespeare serão roubados da igreja, onde ele foi sepultado, e para quem não sabe ele deixou uma maldição que ninguém mexesse no corpo dele. Na minha narrativa, vou acordar essa maldição com as minhas três bruxas também. Mas as minhas bruxas não são iguais as deles, são diferentes, elas se chamam Passado, Presente e Futuro.

A história basicamente é essa. Não respeitei nem as maldições que ele mesmo deixou, e uma delas era mexer em seus restos mortais. Mexi nisso. E outro fenômeno que trago ao livro. Shakespeare escreveu 37 peças, mas muitas outras peças dele desapareceram. Veja, ele só escreveu tragédias e comédias e textos nacionalistas. Mas no meu livro, imagino que ele escreveu um livro ficcional sobre o futuro, e que está desaparecido. Escolhi ainda um juiz aposentado, que é amante dele, quem vai conversar com ele, e o diretor do teatro, vão falar sobre o tempo contemporâneo.

Shakespeare nunca escreveu uma ficção. Mas, neste momento no livro, oportunizo “do ponto de vista ficcional”, uma crítica à sociedade contemporânea. Em um determinado momento do livro, eles (os personagens o juiz aposentado e os atores) vão concluir mesmo que o homem contemporâneo é um homem vazio, conflitado, cheio de dores. Eles sabem que a sociedade ocidental se deformou.

 

Confronto

 

Essa é a grande proposição do livro, é trazer Shakespeare confrontando os valores da época elisabetana os valores contemporâneos. Isso um dia foi real, quando ele também contestou o pensamento medieval. Pasmem. Ele homem é que inventa o ocidente. O ocidente não existia até Shakespeare. E ele inventa a modernidade. A partir dele, tudo acontece. O iluminismo, a revolução francesa, a consagração dos direitos sociais na sequência da República, e tudo começa com Shakespeare, ao ponto de alguns escreverem que ele é tão importante quanto a Bíblia, o que de certa forma é um exagero, mas não são poucos os que dizem que ele é um fenômeno raríssimo na literatura.

Mas ele tem detratores. Tem muita gente que fala mal dele, como sequer tivesse existido, até uma invenção, ou Francis Bacon, ou se fosse gay, vulgar, não faltam adjetivos e subestimações. Pouco importa isso, se foi bárbaro nos textos, ou trágico demais. Para mim, é um fenômeno sem explicação.

 

Passagens obscuras

 

Enfim, o romance também trata de alguns aspectos de sua vida, mesmo que haja passagens obscuras, algumas desconhecidas. A sociedade tradicional não permite que ele fosse um homem comum, devia ser alguém da elite, que não podia falar sobre esses tipos de sentimentos da contradição humana, assim teriam inventado uma figura chamada Shakespeare. Outra, que ele é um cidadão italiano, e não um inglês.

Então o livro não é só um romance simples, é um romance histórico que também fala dele. Fatos estranhíssimos, ele desaparece da sua cidade, Stanford, durante 20 anos, não volta, deixa a mulher dele só volta já no final da vida, nos dois últimos anos, ou seja, ele se afasta da mulher, a Anne Hathaway, que inclusive é o nome de uma atriz de Hollywood, durante cerca de 20 anos, e só volta para casa no fim da vida. Perde um filho em situações misteriosas, o único filho homem. Sequer vem para o enterro do filho, sequer se sabe hoje se foi uma cólera, uma doença da época, afogamento, enfim, há uma série de coisas que obscuras em sua vida, e trato também no livro.

 

Vazio espiritual

 

NORDESTE –   Por fim, a universalidade dos temas de Shakespeare transcende culturas e épocas. O que o senhor avalia que ele diria sobre o mundo moderno e nossos dilemas atuais?

CANNIZZARO – Fatalmente, Shakespeare ficaria intrigado com os conflitos políticos contemporâneos, refletindo sobre a luta pelo poder e a ambição desenfreada que ele tão bem capturou em peças como Macbeth e Rei Lear. Ele poderia criticar a polarização e a manipulação da verdade, temas que ainda ressoam fortemente.

Ele ficaria assustado com a deformação da República, se assustaria vendo esses últimos Presidentes do Brasil. No meu livro ele ironiza os avanços da pós-modernidade. Ele ficaria chocado com a bestialidade da sociedade contemporânea, com o vazio espiritual que tomou conta do homem atual. Ele nos faz uma pergunta capital: Vocês estão mais felizes com essas conquistas? São reflexões relevantes de discussão de meu livro.

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Luciana Leão

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