Marcus Pinto Aguiar *
Em 31 de outubro de 2024, a Éditions Dupuis, editora franco-belga, famosa por suas revistas em quadrinhos (bandes déssinées), manifestou-se publicamente nas redes sociais, informando que cessaria as vendas e retiraria do mercado o álbum Spirou et La Gorgone bleue, publicado em setembro de 2023, da série de aventuras de Spirou et Fantasio, personagens principais dos quadrinhos com mesmo nome.
O referido álbum foi acusado de “conter caricaturas racistas de personagens negras, desenhadas como macacos, e de representar personagens femininas de forma bastante sexualizada” [1].
O comunicado da Editora Dupuis informou: “Mais do que nunca conscientes de nosso dever moral e da importância dos quadrinhos como editores e, mais amplamente, dos livros na evolução das sociedades, agora assumimos total responsabilidade por esse erro de julgamento. É por isso que gostaríamos de apresentar as nossas mais sinceras desculpas. Implementamos a retirada do livro de todos os pontos de venda” [2].
Complementou a Editora que “este álbum se insere em um estilo de representação caricatural herdado de outra época” [3].
Críticas e Negrofobia
Várias críticas foram levantadas contra a Depuis, uma vez que a mesma só veio a público um ano após a publicação, seguida de inúmeras manifestações negativas nas mídias sociais – especialmente a X (antiga twitter) – sobre a BD (tira de quadrinhos) La Gorgone bleue, por apresentar elementos expressos de negrophobie (negrofobia) [4] e do imaginário colonial franco-belga [5].
Aqui, mais uma vez se apresentam questões étnico-raciais e direitos fundamentais, referindo-se também aos limites da liberdade de expressão em confronto com práticas de discurso de ódio e racismo, inseridos no contexto dos direitos culturais em sua dimensão artística e de liberdade de expressão.
Nesse ponto, tanto no comunicado da Editora quanto no debate do canal da televisão pública francesa, falou-se em “caricatura” e “estereótipo”, enquanto expressões culturais de determinada época, como justificativa para validar a peça artística de outrora, ou, no mínimo, amenizar o impacto de sua interpretação considerada de cunho racista na atualidade.
Sobre “caricaturas”
No que se refere à caricatura, foi promulgada no Brasil, em 15 de outubro de 2024, a Lei nº 14.996, que “reconhece as expressões artísticas, charge, caricatura, cartum e grafite como manifestações da cultura brasileira”; e, em seu art. 1º, “cabendo ao poder público garantir sua livre expressão artística e promover sua valorização e preservação”, em perfeita harmonia com o disposto nos arts. 215, da Constituição Federal, que se refere aos direitos culturais, e art. 5º, IV – liberdade de expressão do pensamento.
Quanto ao conceito de caricatura, dispõe o art. 2º, II, da Lei 14.996/2024, que é um “tipo de desenho que, caracterizado pelos excessos, pelas formas e pelos traços deformados, apresenta uma pessoa ou situação de forma grotesca ou cômica”.
Nosso contexto
E quando a representação se refere especificamente não a uma pessoa, mas a um grupo étnico (estereotipia com macaco), em um contexto com personagens “brancos”, realçando a mimetização com primatas apenas dos negros [6], não estaria a expressão artística mais próxima da discriminação racial do que da mera caricatura?
Seria o pedido de desculpas, imediato ou tardio, o suficiente para abrandar a conduta racista e afastar a responsabilidade (penal, civil e administrativa) dos autores? [7]
No contexto da França
Na França, mais especificamente, há previsão de proteção da caricatura no Code de la propriété intellectuelle (Código da Propriedade Intelectual), art. L122-5, em face da intervenção do autor, após a publicação da obra, garantindo a expressão caricatural independentemente de autorização prévia [8].
Todavia, o mesmo debate sobre os limites do uso da caricatura e a prática do racismo também está presente, haja vista, a título de exemplo de repercussão mundial, o ataque ao jornal Charlie Hebdo (2015) [9].
No caso Júlio Cocielo, em julgado de primeira instância, entendeu o magistrado que “utilizar da ‘zombaria de estereótipos’, inclusive para, dentro do papel social do humorista, levar a sociedade a refletir sobre o ranço discriminatório que ainda existe e que precisa ser superado dentro de uma coletividade que se diz fraterna, mas que também prima pela liberdade e que jamais pode compactuar com a imposição do “discurso politicamente correto” [10].
E que o posicionamento do STF, guardião da Constituição Federal (e dos Direitos Fundamentais), é o de que o combate ao racismo não pode se dar simplesmente pelo cerceamento da liberdade de expressão, mas “analisa o contexto, a situação, a pragmática da linguagem a fim de evitar que se tenha essa apriorística e horizontal análise do discurso”.
Fato é que o racismo está fortemente presente na vida das pessoas negras de forma estrutural, com alcances sociocultural e individual, nas sociedades humanas.
E que, diante do embate entre expressões culturais, tal como a caricatura, e o respeito à dignidade humana de tais pessoas, somos surpreendidos, quer por decisões a favor de um ou de outro, acerca dos limites entre ambos os direitos – a liberdade de expressão e a não discriminação.
Caminhos por uma justiça adequada
Então, qual seria um possível caminho para aplicar uma justiça adequada?
Consideramos que os princípios do “método restaurativo” tenham maior efetividade no tratamento de tais conflitos do que a mera justiça retributiva.
Uma vez que, para o primeiro, prevalecem o diálogo entre possível ofensor e possível vítima (direta e indiretamente), considerando a interdependência humana, em um ambiente de confiança, respeito e confidencialidade, permitindo a expressão dos sentimentos e dos valores dos envolvidos, em busca de ampliar a percepção das consequências das condutas do suposto ofensor, na construção de uma sociedade mais fraterna, dialógica e pacífica.
*Marcus Pinto Aguiar, mediador de conflitos (Nupemec/TJ-CE), advogado, Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UnB/Flacso Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do mestrado em Direito da Ufersa e membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt).
Notas:
[1] Aqui, vale conferir texto nosso publicado no blog do IBDCult, que aborda o caso Júlio Cocielo e o racismo, disponível no https://www.ibdcult.org/post/di%C3%A1logo-e-afeto-para-bem-decidir-no-direito
[3] Disponível em: <https://www.europe1.fr/culture/cette-bd-spirou-est-retiree-des-librairies-pour-ces-dessins-a-caractere-raciste-4276131>.
[4] “Entre a negrofilia e a negrofobia: caricaturas dos anos 1920 em perspectiva transnacional”, disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbh/a/3q4kJSsFj9bhb3j6Nh4LSBD/abstract/?lang=pt>.
[5] Para melhor situar a questão, verificar debate no canal do youtube da France Télévisons, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=b4VPrYhBDYkhttps://www.youtube.com/watch?v=b4VPrYhBDYk>.
[6] Para compreender a associação com o macaco: “A discriminação racial partir da associação da pessoa humana ao macaco”, disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/987/pdf.
[7] Conferir “autoidentificação caricatural” apresentada pelo governo brasileiro em: “Olimpíada: Ministério do Esporte publica post racista com imagem de macaco em referência à delegação do Brasil”, disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/olimpiada-ministerio-do-esporte-publica-post-racista-com-imagem-de-macaco-em-referencia-a-delegacao-do-brasil/
[8] Código da Propriedade Intelectual francês, disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000006069414/LEGISCTA000006114031/#LEGISCTA000006114031>.
[9] A Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos, órgão do Governo Francês, a partir de relatório publicado em 2022, indicando um “parâmetro de tolerância”, informa que a tolerância em relação às minorias tem evoluído; mas também que o racismo permanece subestimado na França. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/07/18/racismo-e-xenofobia-diminuem-na-franca-mas-preconceito-contra-ciganos-segue-alto-diz-relatorio.ghtml>.
[10] Decisão de 07 de julho de 2021, Processo Digital nº: 1095057-92.2018.8.26.0100, em sede de Ação Civil Pública Cível – Indenização por Dano Moral; Requerente: Ministério Público do Estado de São Paulo; Requerido: Julio César Pinto Cocielo; Juiz de Direito Dr. Caramuru Afonso Francisco, da 18ª Vara Cível da Comarca de São Paulo.