Um olhar da realidade diferenciada da posse de Trump nesta segunda-feira, por Luciana Bauer

Washington amanheceu fria, com -4 graus. Todos os blocos próximos à Casa Branca estavam hermeticamente fechados para carros. Perguntei ao funcionário do hotel se toda inauguração presidencial era sempre assim, e ele respondeu que não. Disseram que Trump já havia sofrido dois atentados e que toda essa segurança era devido ao risco de novo atentado.

 

Estou em Washington a trabalho e sabia que iria passar o fatídico domingo aqui. Saí para fotografar a movimentação por volta das 10 da manhã. A posse acontece ao meio dia. Mas me surpreendi. Não há alegria nas ruas. Para falar a verdade, as ruas estão vazias. Estou retomando a fotografia e levei uma pequena Leica. Não há autorização para câmeras grandes sem apresentar credenciais ou dar explicações.

 

Saí com essa pequena Leica e vejo pessoas cansadas. Não há absolutamente nenhum jovem ou grupo de jovens que poderiam ter votado no MAGA. Há pessoas velhas, que vieram no dia anterior de ônibus, muitos trabalhadores, crianças dormindo ou no colo dos pais, e algumas maiores brincando com as bandeiras. Há pouquíssimos negros e latinos. Uma senhoramuito idosa passa com andador, ajudada pela filha, vestindo um pijama com a estampa da bandeira americana. Ela segue vagarosamente, numa parábola do que é a América neste dia de posse.

 

 

Há alguns cosplays com muitos adereços. Passa um com chapéu de alce, chamando a atenção de dois jornalistas. Ele celebra a invasão do Capitólio como um ato de liberdade suprema. Eu e os repórteres que são franceses nos olhamos com extrema consciência do que estamos presenciando. Talvez o fato mais importante deste século. Trocamos algumas palavras em francês e vamos para lados opostos. Sabemos eu e eles que a democracia está nas mãos dos riots agora.

 

 

A democracia que presenciamos que presenciamos é indiferente às mudanças climáticas, ao valor do salário mínimo congelado há vinte anos, à pobreza que as barracas de moradores de rua testemunham. A democracia capturada pelos algoritmos, pelo big oil, pelo capital e pelas corporações. A democracia da oligarquia, que Bernie Sanders denunciou há poucos dias. A democracia de Martin Luther King que tem hoje o seu diapresencia a queda dos valores de tolerância e cooperação de forma acelerada.

 

 

Estou na frente do restaurante Hamilton. Há um checkpointcalmo. As pessoas chegam e têm tempo de comprar bonés e camisetas. Estão felizes porque a América cindida, a América dividida, retornou com seu showman. Tiro algumas fotos dos apoiadores de Trump pelo reflexo dos letreiros deste restaurante. E penso: Hamilton e Madison foram os responsáveis por não se adotar a democracia total, mas a democracia parcial das elites e dos colégios eleitorais. Madison, com seu medo tremendo de que o povo empoderado dos novos estados fizesse, por exemplo, uma reforma agrária com as terras da maioria dos congressistas constitucionais, grandes latifundiários. O paradoxo da Revolução Americana de 1776 e da Constituição Americana, que garantiu que todos os homens eram livres, enquanto mantinha seus pés sobre as cabeças dos negros e indígenas que construíram esta nação.

 

O que querem essas pessoas cansadas e empobrecidas que vejo nos checkpoints? Querem o retorno da meritocracia ou o privilégio branco? Querem se livrar da vida baseada em leasingse empréstimos infindáveis ou da dupla jornada? Querem se livrar do idioma espanhol ou chines que ouvem pelas suas ruas?Pensam que os anos de ouro do milagre econômico americano, no início do século passado, são possíveis e retornarão simplesmente anexando territórios como Groenlândia e Canadá?

 

 

Essas pessoas não sabem, e nem lhes interessa saber, que as big techs têm muito a ver com os algoritmos que fizeram com que os Estados Unidos estivessem em seu estado de irreconciliabilidade. Em seu modo mais refratário aos ideais de liberdade e igualdade que moldaram pensadores como Rawls e Thoreau.

 

 

Elas não sabem que uma elite muito mais poderosa que a Inglaterra colonial se apoderou do poder agora. Que brinda nos salões privados e chiques da capital norte americana a ascensãodo projeto 2025, que vai desmontar o sistema de freios e contrapesos que Madison pensou para evitar oligarquias ou tiranias. O projeto que já deu certo na polonia e na Hungria de desmontar o Estado por dentro, retirando funcionários de carreira e colocando pessoas fieis ao ideal MAGA.

 

 

E o Brasil é a próxima parada dessa oligarquia que abocanhou a democracia com seus algoritmos e poder econômico das corporações. A viralização do vídeo de um deputado federal contra o Pix demonstra que toda a máquina de moer democracias já se dirige para as cabeças dos BRICS. Os BRICS, que hoje são o único contraponto que temos para obstar a subjugação total do capital sobre a democracia real. De uma ágora real contra a ágora inventada pelo rolar da timeline.

 

Como lidar com a indiferença à democracia é a grande pergunta que faço. A verdadeira liberdade ainda nos importa? O que Rawls ou Thoreau diriam de pessoas como Zuckerberg ou Musk, que cooptaram e se aliaram ao fascismo?

 

Abandono as ruas vazias. A democracia vazia tornou-seindiferente ao futuro da humanidade. O mundo totalitário do século XXI não terá tortura, prisões políticas ou extermínio em massa. O mundo totalitário pós-Hannah Arendt, que tão bem descreveu o estado totalitário clássico, terá os algoritmos de persuasão certos. E alguns poucos, com cabeça de alce, para celebrar isso.

 

Luciana Bauer é advogada e fundadora do coletivo climático Jusclima. Professora de Filosofia do Direito e Direitos Climáticos é membro do IDENE

Fotos credito Luciana Bauer

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Walter Santos

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